Vida Remota

julho 18, 2007 at 1:00 pm 36 comentários

Vida Remota O copo, que antes era recipiente da geléia de morango, servia-lhe agora como guardião de duas doses de gim. Bucólico, como a melodia feliz da repórter do jornal local, anunciando mais uma medalha de bronze para o Brasil no Pan-americano carioca. E ele nunca foi patriótico, gostava de música americana e usava a cultura indiana para os prazeres libidinosos. Adorava ver desenhos, sentir fragrância de incenso e fins de semana com futebol, mesmo sem sol. Vida simples, com alegria apenas nas anedotas de botequim. E zapeava a TV, percorrendo os canais e as histórias banais dos enlatados pseudo-românticos americanos. O que mais doía era aquele troço no fundo do peito. Tipo a falta de estar vivendo um novo-primeiro-amor, ou dar novamente um primeiro beijo. Porque já fazia tempo em que ele havia esquecido o que era amor. Talvez fosse coisa de seriado, novela e filme.

Nostalgia de uma língua, um cheiro e um abraço terno. Sem gravatas para sufocar, ou pontos para marcar. Saudade de falar besteiras invadindo pupilas, conquistando espaço sem justificar que o sentimento correndo em suas veias é destilado à base de saudade, fogo, desejo e afeição. Forte, como o teor alcoólico de quem está precisando se embriagar de um afeto novo, com pitadas de paixão jovial. Levantou-se do sofá e deixou o controle remoto cair no chão, jogando as pilhas palito pra debaixo do rec da televisão. Resmungou e foi pra janela olhar o céu cinza e úmido. E ele, que um dia viu o mundo colorido, agora deixa a rotina cegar-lhe os olhos. Mas, naquela noite sem estrelas, concluiu que era um homem artificial e azedo. Entregou-se ao vício órfão, para não morrer na espera enrugada, envelhecido pelas marcas deixadas pelo álcool e as cicatrizes de lutas contra o presente-passado.

Vestiu bermuda, camiseta e All Star azul, cor-de-mar. Foi pro bar, só pra rimar mal-estar com jogos de azar. Comprou fichas, perdeu reais, aperitivou amendoim e calabresa acebolada. Bêbados, filósofos de bar, poetas medíocres e mulheres vulgares, tudo no entorno dos olhos de quem não se incomoda em ser mais um ébrio. O embrião da felicidade estava além dos goles e tragos concentrados em motivos que nunca poderiam ser levados tão a sério. Porque todo homem já sofreu por conta de uma mulher. Batons, sorrisos amarelos, pernas, coxas, coxinha de galinha, paqueras fúteis, cheiros, fumos e conversas compromissadas apenas em conquistar uma trepada no fim da madrugada. Amor? Talvez-jamais-novamente-um dia-quem sabe-nunca. E a fadiga de ganhar perdas toda noite é rotineira. Porque acordar no sofá sozinho com um hálito vazio, já é hábito vadio. Pra ele, basta uma torrada com geléia de morango pela manhã para adocicar-lhe a vida. Mas, o que mais doía era aquele troço no fundo do peito. Tipo a falta de pilhas palito no controle remoto da televisão. Porque já fazia tempo em que ele acreditava naquela tela de plasma que reinventava histórias de amor, produzia paixão e criava aquele sentimento vago pra toda a vida. Ainda que a sua vida toda dure apenas uma reprise do último capítulo da novela repetida às 14h, no ‘Vale a Pena Ver de Novo‘.

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Mercúrio-Cromo e Band-Aid Saciando Todos os Gostos que lhe Apetecem Viver

36 Comentários Add your own

  • 1. cabrita  |  julho 18, 2007 às 1:41 pm

    serei a primeira a comprar seu livro, ta?

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  • 2. Sofia fresca  |  julho 18, 2007 às 2:05 pm

    Olá!

    Penso que a solidão é um bem necessário. E acredito em felicidades solitárias. O texto me fez lembrar de:
    “Mesmo minhas alegrias, como são solitárias às vezes. E uma alegria solitária pode se tornar patética. É como ficar com um presente todo embrulhado em papel enfeitado de presente nas mãos – e não ter a quem dizer: tome, é seu, abra-o!”
    (Clarice Lispector, Pertencer)

    Simplesmente diz tudo. Essa falta de ligar pra alguém de madrugada. A ausência de um “Amor” pra cantar músicas indiretamente jogadas no ar.

    Muitas vezes tem-se o presente e não tem a quem ofertá-lo.

    Abraços

    Sofia Fresca

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  • 3. Lorita  |  julho 18, 2007 às 6:29 pm

    Queridão, de todos os textos ácidos que li aqui até agora, esse é o meu preferido. Qta verdade sem máscaras, qta vontade de amar [msm que embaçada pelos vícios e o controle remoto! rs]

    bjm e obrigada por me proporcionar momentos de suspiros em frente ao pc! 😉

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  • 4. Fina Flor  |  julho 18, 2007 às 8:08 pm

    Adorei!!!!

    Por vezes me sinto assim….. A finalização ficou ótima! Eu também ando cansada de acreditar na TV de plasma.

    beijocas

    MM

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  • 5. Edna  |  julho 18, 2007 às 10:40 pm

    Perfeito!!!!!!!!!!!!

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  • 6. Lunna  |  julho 18, 2007 às 11:06 pm

    Meu caro, ainda estou esperando aquela garrafa de vinho…
    Risos.
    Seus textos sempre me causam deliciosas sensações e eu me perco com elas.
    Abraços

    Ps. Nem pense em me encontrar sem aquela garrafa de vinho. Risos

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  • 7. João Paulo  |  julho 19, 2007 às 12:25 am

    Um texto digno de ser lido!!! Muito bom! Confesso que não conheço nada de bebidas, o “gim”, principalmente. Outra coisa foi não ter bebido por amor, pois a mulher que me fez sofrer… curei com muito trabalho e leitura. Foi uma antiga paixão de infância que durou quase oito anos. Ufa!! ainda bem que passou.

    O jogo e as conexões de palavras nos fazem viajar.

    Abração!

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  • 8. Alexandre  |  julho 19, 2007 às 12:41 am

    Muito bom, bom mesmo seu texto!

    Abraços!

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  • 9. Rosangela  |  julho 19, 2007 às 1:23 pm

    Bruno, gostei bastante de seu espaço na blogosfera. Também vou invadir, tá?! Este é um ótimo texto realmente; parabéns!

    Abraços e obrigada por me visitar!!

    Responder
  • 10. Christiani Rodrigues  |  julho 19, 2007 às 3:00 pm

    Oi Bruno, fica com um beijinho no coração, Chris

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  • 11. Margarete  |  julho 19, 2007 às 3:45 pm

    Nossa, acabei de entrar e achei muito bem elaborado esse seu texto, parabéns.

    Responder
  • 12. Girassol  |  julho 19, 2007 às 4:14 pm

    De vez em quando também tenho as minhas fases em que a compota na torrada é a única que me adoça a vida.
    Gosto de ler os textos e, além de pensar em todas as minhas experiências que automaticamente vêm à ideia, ficar criando histórias e visualizando a personagem os ambientes.
    Essa é a qualidade que mais aprecio na tua escrita, a capacidade de nos levar para outros mundos e aguçar a imaginação.
    Beijinhos.

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  • 13. tania  |  julho 19, 2007 às 8:27 pm

    Nossa, muito bom como escreves. Parabéns.

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  • 14. aguas da vida  |  julho 19, 2007 às 9:48 pm

    Fiquei comovida com excelente texto e de profunda sensibilidade, parabens e muitissimo obrigada pela sua gentil visita.
    Big Kiss

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  • 15. Paulo Fernando  |  julho 19, 2007 às 11:15 pm

    Te amo! ahahahah… mas não sou gay, hein!

    Putz, acho que a frase acima ficou tão piegas como os finais felizes das novelas reprisadas às 14h, Enfim, só há uma reprise certa neste momento: aquela em que eu venho aqui, tal qual os outros blogueiros, e te elogio pela forte qualidade do texto e do contexto de seus escritos!

    Saudações tricolores!

    Responder
  • 16. Alexandre Costa  |  julho 20, 2007 às 12:48 am

    Bruno, já tenho a sua imagem…pra onde mando???

    Responder
  • 17. Lunna  |  julho 20, 2007 às 12:54 am

    E eu voltei para ler você novamente.
    A bem da verdade vim visitar suas montagens.
    Fiquei pensando como ficaria uma construção sua para Morning´s Gray.
    Meu livro de poesias.
    Estou em busca de idéias e vim bisbilhotar.
    Beijinhos

    Responder
  • 18. Maísa *Pupila  |  julho 20, 2007 às 2:06 am

    Bruno,
    você tem um olhar único ao escrever,
    … outros olhares? …são meras coincidências.
    beijos poéticos.

    Responder
  • 19. ana.  |  julho 20, 2007 às 11:16 am

    Brunø…
    Bela prosa…Instigante e nostálgica.
    Beijos Poéticos.
    ;**

    Responder
  • 20. Aline  |  julho 20, 2007 às 11:10 pm

    Nossa, forte esse texto, hein?! E bem contemporâneo também! Gstei muito,viu! Vou voltar!!!!

    Responder
  • 21. Alexandre  |  julho 21, 2007 às 3:25 am

    Desculpe Bruno, mas deletei suamensagem com o e-mail por engano. Preciso do seu endereço novamente para te enviar a imagem.
    Abraços!

    Responder
  • 22. Erika  |  julho 21, 2007 às 2:45 pm

    Por que não deixar a geléia de morango entrar pelas veias… melecar todos os tecidos e entranhar-se nos glóbulos vermelhos… adoçando por onde passar?

    Beijos

    Responder
  • 23. Rubina  |  julho 21, 2007 às 9:51 pm

    Adoro os seus textos. Acho que já o disse, mas fica a lembrança 🙂 Beijo

    Responder
  • 24. Lunna  |  julho 23, 2007 às 11:58 am

    Bem, passando por aqui feito o vento nesta quase tarde de segunda-feira para deixar-te um abraço, ler suas palavras e encaminhar o desejo de uma linda semana…

    Responder
  • 25. B.  |  julho 23, 2007 às 8:31 pm

    Pergunto-me quantas pessoas vivem essa mesma realidade tão presente em nossos “tempos modernos”. Realista, crítico, cruel… um tom inquietante e muito bem escrito.
    É sempre um prazer ler-te.

    Bisous.

    Responder
  • 26. Bárbara P  |  julho 24, 2007 às 2:45 pm

    Se pudessemos usar controle remoto no amor, eu usaria vez outra, confesso.

    Responder
  • 27. Lubi  |  julho 24, 2007 às 3:09 pm

    Ótimo, adorei!

    Saudade grande daqui.

    :*

    Responder
  • 28. Fina Flor  |  julho 24, 2007 às 7:40 pm

    Huuuum, cabeçalho novo….. legal!!!

    beijos e boa semana

    MM

    Responder
  • 29. Carol Montone  |  julho 25, 2007 às 5:16 am

    Amei!!! Que fluidez perturbadora…….”como quem precisa se embriagar de um novo afeto….”ai quanta coisa linda…nem sei o que comentar……..amor e Tv de plasma são um mundo de ilusão…..mas quem vive sem eles?????…………nem mesmo mais um ébrio consegue……porque no fim sempre sobra aquele troço no peito…ando meio obcecada e revoltada de amor…não sei dizer….tenho inclusive que mudar o disco ~que tá rsicado lá no céu faz tempo…rs….
    querido é isso…..tb me sinto assim precisando de mais que uma geléia de morango as vezes e na fase atual tento me embebedar de palavras, como as suas, que não engordam e me fazem sonhar mais que meu amadíssimo vinho tinto…odeio gim…mas amei a descrição…
    beijosssssssssssss

    Responder
  • 30. Tânia  |  julho 25, 2007 às 12:37 pm

    Bruno, solidão é algo muito íntimo; existem os que escolhem viver em solidão e os que a solidão escolhe…Não gosto muito da visão deprê da solidão, gosto da escolhida; a que procura paz, não ter que brigar pelo controle remoto…Enfim…
    Também quero livro com direito a tarde de autografo, café e bom papo…
    Beijão querido
    🙂

    Responder
  • 31. Caminhante  |  julho 25, 2007 às 1:40 pm

    O que seria do mundo sem o vale-a-pena-ver-de-novo?…

    Abraço.

    Responder
  • 32. mila  |  julho 25, 2007 às 3:23 pm

    muito muito bom!

    concordando com alguém ai em cima, também penso que a solidão é um bem necessário. Faz a gente dar valor ao que já teve e querer ter de novo algo tão bom.

    ;*

    Responder
  • 33. Rubina  |  julho 26, 2007 às 9:14 am

    E ainda que para ser feliz baste ter momentos felizes! Beijão

    Responder
  • 34. Ana M.  |  julho 26, 2007 às 12:09 pm

    e, dia desses, minha analista me perguntou assim: ” de onde foi que vc tirou essa idéia de que devemos ser felizes sempre?” cara, não acreditei na pergunta e disse: ” e vc nunca ouviu falar em Walt Disney World, não, honey?”e como isso sangra, senhor.
    bisou.

    Responder
  • 35. Christiani Rodrigues  |  julho 26, 2007 às 1:22 pm

    Ao ler seu conto, se estivesse por perto, acho que lhe daria um abraço bem apertado…rs…bjos no coração…
    adoro reticências, p q será? rs…

    Responder
  • 36. elisabetecunha  |  julho 26, 2007 às 2:33 pm

    amo ler vc cara!

    Responder

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O Poeta Corrosivo:

Bruno Cazonatti - Carioca, balzaquiano. Um redator feito de resto das estrelas, que insere neste espaço os seus textos e segredos de muitas lembranças caladas, rascunhos amassados e a poeira dos pés da sua curta estrada.
Faz poesia barata com seus segredos revelados em textos compostos de desejos implícitos, e apimenta suas letras mudas, com contos imaginários, salpicados da acidez que aparece entre raios de sol e a tempestade de palavras com aroma de chuva.
Tudo isso, bem misturado às mensagens rabiscadas na essência da sua vida.
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